A medicina não reparava muito nela e a odontologia cuidava
apenas dos problemas localizados. Agora, as duas disciplinas se uniram para
estudar a relação entre a saúde da boca e o que acontece no restante do
organismo. E vice-versa
Placas bacterianas dentárias podem aumentar em até 80% os riscos
de uma morte prematura causada por câncer. O alerta, publicado recentemente no
periódico British Medical Journal, é apenas o mais recente de uma série
de estudos que vêm movimentando a odontologia e a medicina. Recentemente, o
avanço na tecnologia de detecção de doenças e um movimento realizado pela
classe odontológica "para trazer a boca de volta ao corpo” — ou seja,
estudar sua relação com o resto do organismo — alavancaram o número de estudos
que relacionam as duas áreas. Como resultado, foi desvendada uma série de
relações entre infecções que ocorrem na boca e problemas cardiovasculares,
diabetes, obesidade, câncer, osteoporose, parto prematuro e nascimento de bebês
abaixo do peso.
A ideia de relacionar a saúde bucal com problemas em outras
áreas do corpo surgiu no início do século XX. Nessa época, acreditava-se que
infecções com origem na boca poderiam ser a causa direta de outras doenças –
nascia aí a tese da infecção focal. "Foi uma catástrofe, várias pessoas
tiveram os dentes arrancados desnecessariamente. A odontologia acabou sendo desconsiderada pela
medicina", diz Giuseppe Romito, professor titular de periodontia da
Universidade de São Paulo. Acreditava-se, sem qualquer base
científica, que arrancar os dentes com problemas evitaria que a infecção fosse
disseminada.
Segundo o especialista, a meta agora é fazer com que a boca
volte a ser entendida como uma parte integrante do corpo. Em outras palavras,
os dentistas vêm tentando provar cientificamente que o que acontece dentro da
boca tem uma relação direta com o funcionamento de todo o organismo.
Prova científica — Foi apenas na década de 1970,
quando o dentista americano Steven Offenbacher realizou pela primeira vez um
teste clínico que ligava processos inflamatórios na boca com a ocorrência de
parto prematuro, que a relação boca e corpo começou a ser levada a sério
novamente. Teria início, então, uma caçada científica por quaisquer relações
com as demais inflamações do corpo. Dezenas de estudos conseguiram confirmar os
achados de Offenbacher e encontraram ainda conexões dos males bucais com
diabetes, doenças cardiovasculares, pulmonares, de próstata, osteoporose e
câncer.
Quando começou suas investigações, Offenbacher pôde estabelecer
apenas uma relação epidemiológica entre as inflamações na gengiva causadas por
bactérias e parto prematuro. Hoje, no entanto, uma série de estudos conseguiu
provar com mais precisão a relação entre essas duas condições. Em uma pesquisa
publicada em 2007 no Journal of Periodontology, o especialista mostrou
que quanto mais cedo se der a exposição às bactérias, maiores serão os riscos
do parto prematuro. Nos dados coletados por Offenbacher, descobriu-se que a
exposição com 32 semanas de gestação aumentava os riscos de parto prematuro 3,7
vezes. Com 35 semanas, o risco aumentava duas vezes.
Efeito cascata — As infecções bucais podem causar
prejuízos aos demais órgãos por dois processos inflamatórios diferentes. No
primeiro e mais simples, as bactérias alojadas na gengiva se deslocam pelo
organismo e se instalam em determinados órgãos, prejudicando seu funcionamento.
Nesse caso está o mais conhecido dos problemas, e o único que é, de fato,
causado diretamente pela inflamação na boca: a endocardite bacteriana. "A
bactéria da gengiva viaja pela corrente sanguínea até as veias coronárias (que
levam sangue ao coração) e se alojam ali, infeccionando a membrana da
válvula", diz Rodrigo Bueno de Moraes, periodontista e consultor da
Associação Brasileira de Odontologia (ABO). Em abril deste ano, a Academia
Americana do Coração (AHA, sigla em inglês) publicou um artigo no periódico
médico Circulation confirmando que existe, de fato, uma associação entre
a doença periodontal e a arteriosclerose (endurecimento das artérias). Apesar
da relação, não é necessário que pessoas com boa saúde procurem um
cardiologista a cada inflamação na gengiva.
Há uma segunda maneira pela qual as doenças bacterianas que
ocorrem na boca repercutem em outras partes do corpo. Enquanto luta para
exterminar as bactérias invasoras que tiveram origem na boca, o sistema
imunológico libera diversas substâncias no organismo. Isso causa um
desequilíbrio químico, elevando os níveis de substâncias que interferem no
funcionamento de órgãos, do metabolismo e de sistemas inteiros do corpo. É o
caso, por exemplo, do diabetes. O processo inflamatório na gengiva não causa a
doença, mas ajuda a desequilibrar o balanço químico do organismo, dificultando,
assim, o controle dos níveis de glicose. Mas a relação entre as condições é uma via de mão
dupla. O diabetes, por si só, pode piorar quadros de inflamação
gengival.
Em pesquisa publicada no periódico The Journal of the
American Dental Association (JADA), o pesquisador IB Lamster descobriu que
conforme o índice glicêmico de pacientes com diabetes perdia o controle, os
efeitos colaterais da doença nas inflamações da gengiva ficavam mais sérias.
Esse mesmo desequilíbrio químico pode estar relacionado ainda com problemas
como câncer, parto prematuro e nascimento de bebês abaixo do peso, artrite
reumatoide e obesidade. Prestar atenção ao que acontece na boca, está provado,
pode ser não só uma boa maneira de evitar doenças, mas também detectá-las.
Fuja das
bactérias
Dados epidemiológicos estimam que 90% da população mundial têm
gengivite e que 30% têm doença periodontal. Para manter a boca livre das
bactérias é preciso escovar os dentes e usar o fio dental, no mínimo, duas
vezes por dia. “Não adianta repetir o procedimento dez vezes, se você não escovar
ou limpar corretamente”, diz Romito. É recomendado ainda que se faça visitas
semestrais ao dentista, com realização de exames de sonda (análise da gengiva)
e de raio-X (análise dos ossos do maxilar). O procedimento é protocolar e deve
ser pedido em toda consulta de rotina. Alguns materiais, porém, oferecem maior
proteção, como, por exemplo, a escova interdental. Ela é mais eficaz que o fio
dental para limpeza entre os dentes. Existe também a escova de tufo único, que
costuma ser indicada para pacientes que têm doenças periodontais, como um
complemento à escova comum.
Sinal
de alerta
Mesmo quem mantém uma disciplina exemplar de limpeza dentária
corre o risco de deixar algum canto mal limpo, dando brecha para a infestação
de bactérias. Segundo dentistas, é difícil conseguir deixar a boca
completamente limpa - por isso, a importância da visita regular ao
dentista. “É importante
lembrar ainda que o fio dental não remove apenas a sujeira entre os dentes. Ele
também retira as placas bacterianas”, diz Rodrigo Bueno de Moraes, da
Associação Brasileira de Odontologia (ABO). Sangramentos durante a
escovação ou o uso do fio dental são indícios de uma possível inflamação – e
não de uma limpeza feita de maneira errada.
Fonte: Revista Veja
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